Colaboração : Saulo Alves
Se observarmos uma viola caipira ao longo do tempo, perceberemos que o instrumento não mudou sua estrutura física. Afora as melhorias no acabamento, decorrentes da qualidade dos materiais e das tecnologias empregadas pelos fabricantes e luthiers, que aperfeiçoaram substancialmente a qualidade do instrumento, a viola, que nem sempre foi caipira, é a mesma de outrora. No entanto, o violeiro que a tangia nos primórdios da colonização, distingue-se do que habitava a zona
rural no final do século XIX, assim como daqueles que migraram para a cidade e também dos que hoje aprendem a tocar viola estudando numa escola de música.
Até que o Brasil se urbanizasse, a viola fixou-se no universo rural e permaneceu estanque entre seus habitantes de forma orgânica. No entanto, a relação entre a viola e o violeiro foi alterada com o desenvolvimento de uma indústria cultural que se apropriou da música e dos símbolos caipiras a partir da década de 1930. Este processo teve início com o jornalista e produtor musical Cornélio Pires, comandando várias duplas caipiras, um tipo de formação que continua atuante e se faz identificar no gênero caipira, apesar de ofuscada pela ascensão das duplas sertanejas.
Ainda no que diz respeito às transformações contextuais, facilmente compreendidas se olharmos a longevidade do instrumento, em 1985 foi criado, na Escola de Música de Brasília, o primeiro curso de viola caipira no Brasil. Esta data, ainda que tenha se constituído por algum tempo como um fato isolado dentro do vasto universo do instrumento, marcou o início do seu processo de escolarização. Atualmente, já ultrapassam duas dezenas de cursos, distribuídos na região centro-sul, nos estados de Minas Gerais, Goiás, Paraná e São Paulo, que os oferece em maior número. Isto se justifica, entre outras razões, pelo fato de a música caipira ter se originado nesta região, que também abrigou o desenvolvimento da indústria cultural do gênero.
A inserção da viola caipira no restrito espaço escolar está fortemente ligada ao surgimento de um novo perfil de violeiro, cuja maneira de conceber e tocar o instrumento alterou a concepção que se tinha da viola desde que aportara aqui junto com os portugueses no século XVI. A formação musical desses violeiros abrange conhecimentos teóricos e técnicos fundamentados e sistematizados que lhes permitem ler e escrever música. Estas características, mais a habilidade em emular o estilo do violeiro tradicional, os habilitam a implementar novas atividades culturais: concertos, workshops, oficinas, produção de métodos de ensino.
Devido à produção de um grande repertório instrumental destes violeiros, podemos dizer que está se compondo um novo segmento que projeta a viola em espaços anteriormente restritos à música erudita. Recentemente, também tem estado em evidência uma formação musical peculiar que é chamada de orquestra de viola ― em verdade, o termo refere-se a um conjunto musical composto basicamente por violas e não a uma orquestra convencional. No último levantamento, mapeei mais de 40 orquestras de viola que se encontram distribuídas entre os estados de São Paulo (33), Minas Gerais (7), Paraná (2) e Goiás (2).
Juntamente com Roberto Corrêa, que criou o primeiro curso, todos os demais professores de viola das escolas de música possuem formação violonística: Ivan Vilela (USP - Ribeirão Preto/SP), Junior da Violla (Escola Livre de Música Pitch & Bend – São Paulo/SP), Rogério Gulim (Conservatório de Música Popular Brasileira – Curitiba/PR), Robson Carvalho e Fabiano Freitas (Conservatório de Uberlândia e Conservatório de Uberaba – MG, respectivamente), entre outros. Mas se esta particularidade impede que sejam chamados de “caipiras autênticos”, estes violeiros urbanos extraem o tempero da reserva de tradição oral que resistiu no folclore e na música caipira.
É importante frisar que este contexto em que a técnica de violão está permeando a da viola caipira justifica-se diante do fato de que a escola violonística se estruturou no Brasil ao longo do século XX, principalmente depois da sua segunda metade, acompanhando o samba, a bossa nova, o rock, etc. Embora descenda desta que no Brasil restringiu-se ao símbolo da música caipira, o violão, pode-se perceber, ampliou sua projeção bem acima de sua casta na música ocidental, atuando em diversas formações e gêneros musicais de sucesso. Ademais, firmou-se como instrumento de concerto por meio do espanhol Andrés Segóvia. Nesta fase da escolarização, a formação violonística desses professores, inevitável para a condução desse processo, é um dos fatos mais singulares. Primeiramente, rompem com uma tradição oral secular de ensino de viola e, conseqüentemente, por pertencerem à primeira leva desta nova categoria, tornam-se responsáveis por sistematizar o ensino desta na escola. Em segundo, operando diversos elementos da cultura que circunscrevem a escolarização, gradativamente, a introdução da técnica do violão sobre a técnica da viola tornar-se um fato interfere na concepção tradicional da viola caipira.
Finalmente, refletir sobre o ensino da viola no âmbito escolar, face à sua inserção noutros segmentos socioculturais, é uma perspectiva concreta e constitui uma necessidade para a estruturação dos cursos em andamento, assim como para difundir as experiências pedagógicas junto às escolas que poderão se inspirar naqueles já criados. Importa perceber como a escolarização do ensino da viola caipira está sendo pensada por esses professores que agora atuam como educadores, não esquecendo que a viola se perpetuou entre os violeiros que detinham um saber facilmente reconhecido quando ouvíamos suas músicas, mas que não raramente são reconhecidos como aqueles que “fazem música, mas não sabem música”.
Saulo Alves é músico e pesquisador. Atualmente estuda o processo de escolarização do ensino da viola caipira na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).
Fotos: Cornélio pires (de terno) em 1929,
Ivan Vilela e
Roberto Corrêa
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