Sobre o caipira e a essência

Por Ulisses Coelho
Antes de qualquer causo ou digressão cultural vamos ao significado etimológico da palavra caipira. É oriunda do tupi e significa “cortador de mato”, termo que os índios do interior paulista cunharam para definir caboclo e o homem branco que capinavam o estado de São Paulo. Dessa forma, não é nenhum absurdo afirmar, que a gênese etimológica do caipira é interiorana, digo etimológica devido às diversas influências estrangeiras que a cultura caipira recebe mais notoriamente a portuguesa e a italiana, posto o reconhecido catolicismo exagerado. Então, quando estamos falando sobre o caipira, mesmo se tratando de uma inconsciente autobiografia, fala-se sobre o interiorano nascido nas terras paulistas que estão fora do centro metropolitano da capital e do litoral.

Atualmente, existe um fenômeno que valoriza a cultura caipira, principalmente no que diz respeito à sua arte e culinária. Esse fato aqui será tratado como um sintoma, ao contrário da forma que é encarado comumente, que vê nisso um heróico esforço de resgatar as tradições regionalistas nos moldes como eram. Essa retomada do caipirismo é o resultado da expansão da fronteira agrícola e a política governamental de valorização de combustíveis renováveis. Trocando em miúdos, o estado de São Paulo virou um imenso canavial que substituiu as pequenas localidades agrícolas, onde se desenvolveram os caipiras e seu proceder antropológico. Retomando o que chamei de sintoma, pois é uma espécie de tentativa para que tudo não se perca ou o último canto do cisne. Entendi isso melhor no dia em que vi meu pai chorando, no sítio de um primo seu, quando foi informado que a casa onde passou parte da infância está encoberta pela cana-de-açúcar.

Mas enfim, o que prende a atenção para essa análise, sobre os aspectos da cultura caipira, é a arte, em específico, a música. As modas de viola tratam, geralmente, de temas do cotidiano. Letras sobre religiosidade, lições de moral, amores e desamores, permeiam todo esse universo musical. A dança, em especial o catira, também integra o panorama artístico. Entretanto, sobre as letras, podemos dizer que elas tratam de virtudes que constituem a ESSÊNCIA do interiorano. As pessoas se enxergam nas abordagens musicais como verdadeiros reflexos de suas capacidades subjetivas. Não há quem não se emocione, diria quem não se coloque no lugar do velho injustiçado, na moda “Couro de boi” de Diogo Mulero.

Entretanto, a retomada dos valores caipiras, principalmente os musicais, cabe uma comparação com a análise feita pelo húngaro György Lukács em sua aclamada “Teoria do romance”. Embora sua pesquisa se realize no âmbito artístico literário, ela é plenamente aplicável ao músico literário, pelas claras afinidades enunciadas nos termos. Lukács pesquisa a literatura desde a epopéia grega até o surgimento do romance, pontuado por alguns com o livro Dom Quixote de Miguel de Cervantes. A literatura nos tempos de epopéia, em particular a grega, narrava um herói plenamente humano que seus feitos eram modelos para todos os homens. A vida estava repleta de sentido e as pessoas se viam integradas em sua sociedade. Por alguma razão, o grego passou a não se ver mais espelhado em seu meio social, na arte passou a surgir uma nova forma literária, a tragédia, que passou a refletir na dualidade entre antagonista e protagonista a cisão sofrida entre individuo e sociedade. A essência não era mais dada. O não há modelos heróicos a seguir. Agora o que se devia tentar fazer é que as essências das pessoas se tornassem mais vivas, eis o projeto da tragédia. Intenção não conquistada surgiu a filosofia e colocou a essência das coisas no transcendental, ou como quis o digníssimo Platão, no “Mundo das Idéias”. A historia artística do grego foi um distanciamento gradativo do que se tinha por essencial. Lukács segue sua análise até chegar ao surgimento do romance, que vai defini-lo como “expressão do desabrigo transcendental”. Na medida em que as pessoas não foram mais se vendo satisfeitas em suas sociedades, as obras de arte foram refletindo esse processo com o distanciamento das essências. Esses três estágios da cultura grega: épico, trágico e filosófico; expressam as mudanças da sociedade grega, agora refletida pelo autor nas artes.

Creio que essa analise feita por Lukács pode ser posta a serviço da cultura caipira. Na medida em que a sociedade foi se transformando, semelhantes mudanças se deram nas artes caipiras também. O êxodo rural da segunda metade do século XX e o crescimento dos canaviais foram se refletindo nas artes, a música sertaneja de raiz foi se “eletrizando” ou se plugando em amplificadores maiores, pois as pessoas saíram do ritmo agrícola e foram se adaptando ao ritmo urbano. Deixaram de se ater ao Tião Carreiro se aproximando do Zezé di Camargo. Acreditar que se pode retomar a cultura caipira como ela era é a mesma coisa que se pensar em retornar a Grécia antiga, não que exista uma noção de melhor e pior, mas tão somente por a historia ser uma moto descontrolada e sem freio, por isso, também sem marcha ré.

Então, o que se pode fazer para uma cultura não cair no ostracismo da noite dos tempos? A primeira coisa é registrar tudo o que se conseguir, nos mais variados suportes tecnológicos. Segundo, não se pensa uma cultura sem influência da outra, para imaginar uma cultura que dê conta de algo parecido como fez a caipira, devemos elaborar uma outra abordagem, que por falta de termo melhor, vamos chamar de regionalista. Cultura regionalista. Não é substituição, pois em âmbito regionalista, se pensa diretamente ligado os valores da cultura caipira. Já que não podemos voltar atrás, construiremos nosso futuro sobre as bases que mais prosperaram em nossa historia. Viva a cultura caipira! Viva a cultura regional!

Ulisses Coelho

Ulisses é professor de filosofia em Assis/SP e atualmente desenvolve pesquisa entitulada "O regionalismo em Assis e adjascências". Também é colaborador desse blogue.

Um comentário:

Carmem Toledo disse...

Esta discussão é muito pertinente nos dias atuais, em que tudo é descartável.
Vamos construir um futuro sobre as bases que nos deixaram um dia!
Não nos esqueçamos de quem contribuiu para nossa cultura.