Helena Meireles

colaboração de pesquisa: Adriana Laurentino
Helena Meirelles nasceu em 1924 no Mato Grosso do Sul, começou a tocar viola caipira aos 08 anos. Cresceu rodeada de peões, comitivas e violeiros pantaneiros. Aprendeu a tocar sozinha e escondida, já que nasceu em um período que muitas coisas não eram permitidas às mulheres, inclusive tocar instrumentos.

Por causa de tentativas de abuso por parte do pai fugiu de casa aos 15 anos e teve o primeiro filho aos 17. Tocava de graça em festas, bailes e bares de Mato Grosso do Sul e no interior do oeste paulista. Prostituiu-se durante 03 anos, casou-se 03 vezes e teve 11 filhos.

O reconhecimento por seu trabalho só aconteceu em 1993 quando seu sobrinho Mário Araújo enviou uma fita cassete com três músicas dela para a revista estadunidense Guitar Player que a escolheu como Instrumentista Revelação do Ano, com o Prêmio Spotlight.

Helena também tocava outros instrumentos, mas foi com a viola que consagrou-se e revelou os encantos musicais pantaneiros. Com influências paraguaias, sua música seguiu os ritmos de sua região. Ficou reconhecida pelos sul-mato-grossenses como expressão das raízes e da cultura da região. Gravou quatro álbuns: "Helena Meirelles" (1994), "Flor de Guavira" (1996), "Raiz Pantaneira" (1997) e "De Volta ao Pantanal" (2003).
Com direção de Francisco de Paulo em 2004 foi lançado o documentário “A dama da Viola”, que conta sobre a arte e a vida de Helena Meirelles.
Faleceu vítima de parada cardiorespiratória aos 81 anos.

Abaixo, segue entrevista com Helena Meirelles, realizada pela jornalista Lucy Dias. Revista Marie Claire, edição de junho de 1994, número 39, pág. 40 à 44.

Marie Claire/Lucy Dias - Alguma vez você imaginou que sua vida fosse dar essa virada?

Helena Meirelles - Não, porque fui criada que nem bicho selvagem no Mato Grosso. Quando nasci e me tornei menina-moça e de moça mulher, lá era sertão bruto, só existia bicho bravo, perigoso, e a gente tinha que viver se escondendo. Nós crescemo assim, via gente, tinha medo; se via um automóvel, nós pensava que era bicho e se escondia até debaixo da cama.(Estamos mantendo sua fala original.)

MC - Quem eram seus pais?
HM - Meu pai se chamava Ovídio Pereira da Silva e minha mãe, Ramona Vaz Meirelles. Ela nasceu no Mato Grosso, num lugar de nome Catiqués; ele nasceu no Paraguai, mas veio criancinha pra cá. Os paraguaios com os mato-grossense são irmãos, falam a mesma língua, é a divisa, né?

MC - E ainda tem uma coisa de índio...
HM - A mãe de minha bisavó era índia pegada a laço nas matas do Paraguai.

MC - Do que viviam?
HM - Meu pai trabalhava de boiadeiro tomando conta de fazenda, viajando no estradão, o meu avô também, minha família era tudo boiadeiro.

MC - Quando descobriram que você tocava?
HM - Eu tinha uns nove anos. Meu tio tava viajando e parou com a comitiva. Aí mandou eu buscar o violão dele, afinou e começou a tocar. Eu olhei, olhei e falei:"Tio, eu queria tocar uma moda com o senhor". Ele olhou espantado: "Tocar violão?" Expliquei: "É, eu já toco um pouquinho". Ele disse: "Vai buscar o violão lá, sua merda, se você não tocar eu vou te dar uma surra". Fui mais que depressa. Na hora de afinar, ele disse: "Dá aqui que eu afino". Eu disse: "Pode deixar que eu sei". Ele ficou com os olhos arregalados vendo eu afinar. Depois eu falei pra ele solar que eu ia acompanhar. Aí arrematei: "Agora o senhor me acompanha que eu vou solar". "Mas quem te ensinou?", ele me perguntou. "Eu aprendi sozinha vendo o senhor e o Aldo (o irmão) tocar." Daí em diante ele já foi lascando para todo mundo e falando que tinha uma sobrinha que tocava e tocava muito bem. Dali se alastrou para o Mato Grosso.

MC - Seus pais proibiam você de tocar e ameaçavam cortar seus dedos?
HM - Eu dizia: "Corta , que eu toco com os tocos". Eu era capetinha desde criança. Minha mãe não pôde comigo, ninguém me segurou.

MC - No seu tempo, mulher não podia uma porção de coisas.
HM - Era muito atrasado o pessoal do sertão, mas era porque eles eram muito respeitoso mesmo. O vestido da mulherada era do colarinho cá em cima, o punho lá embaixo, a saia arrastando o chão. Do corpo só mostrava os dedo da mão e do pé. Moça que mostrasse um pedaço do corpo era posta pra fora, rua. Não entrava mais em casa de família. Eu já era moça e a minha mãe falava de mulher da vida. Eu não entendia, "que qualidade de mulher é essa?" Mas naquele tempo não explicavam. A gente ficava lutando com os pensamentos. Eu já era mulher velha no Mato Grosso quando falavam "homem viado" eu falava "mas o que será homem viado? Será que o homem viado também fica de quatro pés, pastando lá no mato?" Depois que fui indagando o que era, teve um que falou: "A senhora não sabe o que é homem viado? É o homem que dá o cu". Eu falei: "Nossa senhora, e esse cara não morre?"

MC - Você sabia como nasciam as crianças?
HM - A minha avó. que era a parteira da minha mãe, falava que trazia o nenê na saia, lá do rio, e nós acreditava. Até que eu disse para uma prima que andava viajando pelo mundo, "ah, hoje a vó vai trazer pra nós um maninho lá do rio, na saia". Ela falou: "Larga de ser boba, é lá do rio nada. A tua mãe tá no trabalho de parto". Aí eu fiquei desesperada: "Ai, meu Deus, a minha mãe vai morrer agora. Mas é pelo nariz?" "Não é." "É pelos olhos?" "Não." "Racha a cabeça da minha mãe?" "Não. É por lá." Viu como a gente era burro? A moça casava antigamente e não aceitava o marido, não. Tinha medo do homem e o homem tinha medo da mulher. Hoje em dia, não, já cerca na rua, aí mesmo em qualquer lugar. Eu fico boba com isso.

MC - Qual foi a barra mais pesada que você já enfrentou na vida?
HM - Foi com meu pai. Ele me perseguia muito desde criança, mas com a idade de mocinha ele começou a me perseguir mais e uma vez ele se enroscou em mim. Aí eu fui pra luta e falei pra ele: "Você pode fazer comigo o que quiser, mas só depois que pular por cima do meu defunto três vezes. Do contrário você não faz."

MC - Você teve coragem de contar para sua mãe?
HM - Contei pra minha mãe, contei pro meu irmão. Mas a minha mãe não fazia nada. E foi por causa disso que eu fugi de casa.

MC - Quantos anos você tinha?
HM - Eu tinha uns 15 anos. Ele falava assim: "A terra cria, a terra come, eu também faço e também como". Eu diz pra ele: "Mas eu, o senhor não me come não".

MC - Você se casou com 17 anos?
HM - Com 17 eu tive o primeiro filho. A minha irmã casou e eu fui embora com ela. Lá apareceu o primo do meu cunhado e gostou de mim. O pai dele arrumou um padre que fez o nosso casamento.
(...)
MC - Quanto tempo você ficou na zona?
HM - Mais ou menos três anos.
(...)
MC - E você não se apaixonou por nenhum homem nesse período da sua vida?
HM - Não. Eu só fui me apaixona por um homem... Um rapaz quando eu ainda estava na casa de meu pai.

MC - Quem era ele?
HM - Era um paraguaio de nome Lucio Rodrigues Fernandez. Eu amava aquele homem, mas o meu pai e a minha mãe não quis que eu casasse com ele.

MC - Por que?
HM - Porque a irmã de minha mãe casou com um paraguaio contra a vontade do meu avô e sabe o que aconteceu? Depois dela ter dois filhos, ele deu dois tiros de 38 nela. Então meu pai dizia: "Esse paraguaio esta jurando você antes de casar, ele vai acabar te matando". Mas com isso tudo eu queria morrer nas mãos dele.

MC - Antes de casar ele dizia que ia te matar?
HM - Ele jurava de me matar porque era demais ciumento. Era paraguaio puro mesmo.

MC - Foi o homem que você mais amou...
HM - Eu gostei e até hoje sonho com ele. Deito na cama e fico lembrando, oh , meu Deus... O dia que falei que eu não queria mais o casamento, ele montou no burro e foi embora. Nunca mais eu vi. Depois que virei mulher da zona, procurei ele até em buraco de tatu. Se tivesse achado, sei lá, viu...

MC - Você teve onze filhos, e fez, sozinha, o parto de todos?
Helena Meirelles - Eu mesma é quem fiz, abaixo de Deus, porque eu fui mulher de bastante coragem. Eu não tinha um pingo de medo.

MC - Nunca teve complicação?
HM - Não. Quando eu sentia que já ia estourar mesmo eu subia na cama e tinha o meu filho deitada, sem segurar em nada nem em ninguém.

MC - E cortava o cordão?
HM - Deixava tudo pertinho, a tesoura, o iodo, tudo no jeito. Eu cortava o umbigo, media um dedo e amarrava; media mais um dedo e cortava.

MC - Você aprendeu sozinha?
HM - Foi tudo da minha cabeça porque a minha avó era parteira, mas nunca vi a vó cortar umbigo. Ouvia ela falar: "Mede um dedo e amarra; mede outro, corta".

MC - Se foi fácil parir, criar foi mais complicado: você deu quase todos os filhos, não?
HM - Sabe por quê? Eles eram pequenos, mas já sabiam limpar a bunda. Porque filho só precisa da mãe enquanto tem que limpar a bunda deles.

MC - Não dava para ficar com eles?
HM - O João eu dei porque eu tava nessa vida, né? Foi relação rápida. A menina também. Os outros dois do paraguaio eu entreguei pro pai. Sabe o que ele fez? Arrumou uma mulher e abandonou os meninos.

MC - Você tem notícias deles?
HM - Tenho, mas eles me detestam. Só o que mora em Mauá gosta de mim, e o Barbino, que mora comigo e tem 28 anos, com tudo que ele é débil mental, ele gosta de mim uma coisa bárbara.

MC - Você não se arrepende de ter abandonado seus filhos?
HM - Eu já pedi perdão a Deus porque eu entrei numa estrada suja, mas pedi pra sair e estou feliz.

MC - Você tem religião?
HM - Eu fui criada na Igreja católica, só que não vou na igreja. A minha corrente já vai direto aonde está o nosso Pai. Quando bebia pinga e bagunçava e pintava e bordava, eu tinha esses dois meninos, esse que é doente mental e o que está em Mauá, os meus caçulas, e um dia acordei cedo e sentei na minha cama, bem de ressaca. E vi os meninos fuçando no fogão a lenha, com a cara cheia de carvão. De certo eles tavam querendo comer, com fome, e eu lá dormindo. Olhei bem assim e falei: "Mas que barbaridade. Ô meu Deus, ô meu Jesus, ilumina meus passos, me mostra uma estrada de luz, eu tô na escuridão, eu tô no espinho. Chega de sofrer com os meus filhos". Daquele dia em diante - até me arrepio- não bebi mais e detesto gente com bebida. Fui trabalhar de empregada e nunca mais deixei faltar o pão de cada dia, nem um pedacinho de carne.

MC - Quais eram seus maiores vícios?
HM - Foi só beber, mascar fumo e tocar na zona.

MC - Quanto tempo você mascou fumo?
HM - Masquei 40 anos. Enquanto eu mascava, meus dentes estavam perfeitos. Parei de mascar, foi de fio a pavio, rápido.

MC - E a marvada pinga?
HM - Comecei a tomar pinga eu tinha uns 25 anos, quando comecei na zona. Bebia pinga e cerveja, não tomava álcool. A mulherada bebia, né? Bebia perfume, desodorante... No meu quarto tinha sempre três, quatro garrafas de pinga. Cheguei a beber mais de uma garrafa por dia.
(...)
MC - Essa coisa dos homens só gostarem de mulher mais nova te deixa aborrecida?
HM - Não, não me deixa porque o meu talento já é suficiente pra eu viver alegre e contente. Pode me chamar de feia que eu aceito, pode me chamar de coscorenta que eu aceito. Não é nem comigo, não ligo. Já vi gente debochando, falando que eu era feia, e eu falei: "Quero ver uma bonita chegar onde eu cheguei. Não chega". Tem muita bonita que não vai na televisão, não faz show, os jornalistas não chegam perto e é bonita dos pés à cabeça.

MC - Você é vaidosa?
HM - Quando eu era mais nova, e até há pouco tempo eu era, gostava de andar arrumadinha, usava muita pintura.

MC - E quando os cabelos começaram a cair?
HM - Faz uns oito anos. O doutor falou que em todos os velhos o cabelo tem de cair mesmo, ainda mais com tanto antibiótico e injeção perigosa que tomei.
(...)

MC - Muita gente diz que em roda de viola o diabo anda por perto. É por isso que você sempre fez suas palhetas de chifre de boi em noite de Sexta-Feira Santa?
HM - Diz que tudo que toca tem parte com o capeta, menos o violino, que é em forma de cruz. Então a gente tinha que levar o violão com acordoamento novo embaixo de pé de figueira na Sexta-Feira da Paixão, da meia-noite pro dia. E depois fazer as palhetas de chifre antes do sol nascer.

MC - Se não...
HM - É muito perigoso. Tem nego que fica despeitado, dá tiro, pode até matar a gente.
(...)
MC - Depois que você saiu da zona, você desapareceu: foram 32 anos de sumiço total. Sua família dava você como morta.
HM - Não dei notícia pra ninguém. Sumi mesmo, desde 59, quando amiguei com o Constantino (e atual marido). Só apareci agora.
(Foi graças a essa reaparição que sua descoberta foi possível: seu sobrinho Mário Araujo, que também é músico, resolveu investir na ovelha negra da família, mandando uma fitinha com três músicas e uma carta para o editor da Guitar Player. Dois meses depois, soube que Helena foi eleita a artísta do mês de novembro de 1993).

MC - Por onde você andou por todo esse tempo?
HM - Fiquei por esse mundão velho trabalhando, fui pro Pantanal, andei por lá tudo. Trabalhava de empregada, lavadeira, cozinhava pros peão. Meu marido no estábulo. E toda fazenda que ele ia, eu ia também.

MC - Tem alguma coisa da qual se arrependa?
HM - Nunca me arrependi de nada.

MC - Se pudesse começar de novo...
HM - Eu tinha coragem de tocar uma zona por minha conta. E se me convidarem, eu vou. Vai eu e o meu velho também.
Entrevista na íntegra: http://www.teatrobrasileiro.com.br/entrevistas/helenameirelles.htm

Dona Helena
"Eu só queria ser eu! Eu sou dona do meu nariz e da minha direção."
Helena Meirelles faleceu em 2005, doze anos depois de ter sido "descoberta" pela revista norte-americana Guitar Player, que a colocou entre os 100 melhores guitarristas do mundo, ao lado de músicos como Roger Waters e Eric Clapton. Dona Helena nasceu no sertão do Brasil e desde criança era apaixonada pela viola. Passou a sua juventude entre comitivas de boiadeiros e prostíbulos, lutando pelo direito de tocar. Analfabeta, virou estrela no Brasil. Sua história e sua arte são mostradas neste documentário obrigatório para os amantes da música..

Trailer do filme Dona Helena

Ano de Lançamento: 2007Direção: Dainara Toffoli

Um comentário:

Domartello disse...

Parabens pela postagem.Foi por causa dela que hoje fabrica palhetas de chifre de boi para meu uso e tbm para vender.Um abraço.
Carlos..